sábado, 6 de dezembro de 2014

NO VENTRE PATERNO - CAPÍTULO 6


Rea e Crono

Crono casa-se com Rea e também terá filhos, que, por sua vez, gerarão outros filhos. Forma-se assim uma nova geração de divindades, a segunda geração de deuses individualizados, com seus nomes, suas relações, seus setores de influência. Mas Crono, desconfiado, ciumento e zeloso de seu poder, não confia nos filhos, tanto mais porque Gaia o alertou sobre esse problema. Mãe de todas as divindades primordiais, ela está nos segredos do tempo, capta aquilo que, dissimulado na escuridão de seus desvãos, vem à luz pouco a pouco. Conhece o futuro antecipadamente. Gaia preveniu o filho de que ele também se arriscava a tornar-se vítima de um dos membros da prole. Um de seus filhos, mais forte que ele, o destronará. Por conseguinte, a soberania de Crono é temporária, o que o preocupa e o leva a tomar suas precauções. Assim que tem um filho, engole-o, devora-o, esconde-o na barriga. Todos os filhos de Crono e Rea são tragados pelo ventre paterno.
Naturalmente, Rea não está nada satisfeita com esse comportamento, assim como Gaia não estava com a conduta de Urano, que impedia seus filhos de virem à luz. De certa forma, Urano e Crono rejeitam a progenitura na véspera de seu nascimento. Não querem que venha à luz, que seja como a árvore que perfura o solo e leva sua vida entre o céu e a terra. A conselho de Terra, Rea resolve se defender da conduta escandalosa de Crono. Planeja uma artimanha, uma burla, uma fraude. Ao fazê-lo, ela opõe-se a Crono aquilo mesmo que o define, pois ele é um deus da astúcia, um deus da mentira e da duplicidade. Quando Zeus, o último filho, o caçula -- assim como Crono era o caçula de Urano --, está prestes a nascer, Rea vai a Creta e dá à luz clandestinamente. Entrega o bebê à guarda de seres divinos, as Náiadas,
Náiadas e Zeus
 que vão se encarregar de criá-lo dentro de uma gruta a fim de que Crono não desconfie de nada, nem ouça os gemidos do recém-nascido. Depois, os gritos da criança logo se tornam mais fortes, e Rea pede a divindades masculinas, os Curetas, que fiquem defronte da gruta e se dediquem a danças guerreiras para que o ruído das armas e os diversos barulhos e cantos abatem o som da voz do jovem Zeus. Assim, Crono não desconfia de nada. Mas, como sabe que Rea estava grávida, espera ver o recém-nascido que ela teve e que deve Ihe apresentar. Então, o que mostra Rea? Uma pedra. Uma pedra que ela escondeu entre as baldas da criança. Diz a Crono: "Toma cuidado, ele é frágil, pequenininho”, e Crono cai na artinha e engole a pedra enrolada no cueiro. Toda a geração dos filhos de Crono e Rea já estava no ventre de Crono; e agora, para completar, ele engole uma pedra.
Enquanto isso, em Creta, Zeus cresce e fica forte. Quando chega à plena maturidade, vem-lhe a idéia de fazer com que Crono expõe seu crime contra os próprios filhos e também contra Urano, que ele mutilou perigosamente. Quer que Crono vomite a prole que tem na barriga. Como fazer? Zeus está sozinho. Mais uma vez, é graças à astúcia que conseguirá, graças a essa astúcia que os gregos chamam mêtís, ou seja, essa forma de inteligência que sabe combinar de antemão procedimentos de vários tipos para enganar a pessoa que se tem diante de si. A astúcia de Zeus consiste em fazer Crono tomar um phármakon, ou seja, um remédio, apresentado como um sortilégio, mas que na verdade é um vomitório. É Rea que Ihe oferece. Mal Crono o engole, começa a vomitar. Primeiro, a pedra, depois Héstia, que é a primeira a aparecer, depois toda a série de deuses e deusas, no sentido inverso de suas idades. No fim da fila está o mais velho, logo depois da pedra está a mais moça. Ao pô-los para fora, Crono reintegra, a seu modo, o nascimento de todos os filhos que Rea pôs no mundo.

GUERRA DOS DEUSES, REINADO DE ZEUS - CAPÍTULO 5

Crono e Zeus
No  teatro do  mundo,  o  cenário  está  montado.  Abriu-se  o  espaço, o  tempo passou, gerações vão  se  suceder.  Há  o mundo  subterrâneo, há  a  vasta terra,  as  ondas, o  rio  Oceano que cerca tudo isso  e,  lá em  cima,  um céu  fixo.  Assim como  a terra  é  um  local estável  para  os homens  e  os bichos,  também, no  alto,  o  céu  etéreo é  morada  segura  para  as  divindades. Os Titãs,  fihos  do Céu,  e que são  os  primeiros  deuses  propriamente  ditos,  têm, pois,  o  mundo  à  sua  disposição. Vão  se  instalar  bem  no  alto,  sobre  as  montanhas  da  terra,  ali onde também  se estabelecerá a  morada  estável  das  divindades menores,  como  as  Náiadas, Ninfas dos Bosques e  Ninfas  das  Montanhas. Cada  um  deles  se  instala onde pode agir.
Bem no  alto do  céu  encontram-se os  deuses  Titãs,  esses  a  que chamamos  de  Urânidas,  filhos de  Urano,  rapazes e moças.  À frente deles está  o  caçula, o mais  jovem dos  deuses,  que  é  astuto,  burlão, cruel.  É  Crono, que  não  hesitou em cortar  as  partes  sexuais  de seu pai.  Ao  ter  a ousadia desse gesto,  desbloqueou  o universo,  criou  o espaço, engendrou um  mundo  diferenciado, organizado.  Esse gesto positivo  também tem um aspecto sombrio, pois  ao  mesmo tempo  é uma falta pela  qual  ele terá de  pagar:  quando  se  retirou  para seu lugar  definitivo,  Urano  não  deixou  de  lançar contra  seus  filhos,  os  primeiros deuses  individualizados,  uma imprecação  que  se  realizará  e ficará  a  cargo das  Erínias,  nascidas  da  mutilação.  Um dia, Crono terá de  pagar  a  dívida com  as  Erínias vingadoras  de seu  pai.

Portanto,  é  Crono,  o  mais  moço  e  também  o  mais  audacioso filho  de  Gaia aquele que  emprestou  seu  braço  à  artimanha  da mãe  para  afastar  Céu  e  separa-lo  dela,  que  será  o  rei  dos deuses e  do  mundo.  Com  ele,  em  torno dele, estão os deuses  Titãs, inferiores mas  cúmplices.  Crono  os  libertou,  eles  são  seus  protegidos. Dos  abraços  de  Urano  e  Gaia, também haviam nascido  dois  trios de  personagens  que,  de  início,  estavam  bloqueados,  tal  como  seus irmãos Titãs, no  seio  de  Terra:  são os  três Ciclopes  e  os três  Cem- Braços.  O  que  acontece  com  eles?  Tudo  leva  a  crer  que  Crono,  esse deus  ciumento  e  malvado, sempre  à  espreita,  os  acorrentou, receoso de  que alguém  estivesse  tramando  um  golpe  baixo  contra ele.  Amarra  os  três  Ciclopes,  os  três  Cem-Braços,e  relega-os  ao mundo infernal.  Por  outro lado,  os  Titãs  e as  Titânidas vão  se  unir, Crono  a  uma  delas,  Rea.  Esta aparece  como  uma  espécie  de dublê  de  Gaia.  Rea  e  Gaia  são  duas forças  primordiais  próximas. No entanto,  algo  as diferencia:  Gaia  tem  um  nome transparente para qualquer  grego, pois  se  chama Terra e  é  a  terra; Rea,  por  sua vez, recebeu  um  nome  pessoal,  individualizado,  que  não encarna nenhum  elemento  natural.  Rea representa  um  aspecto  mais  antropomorfo, mais  humanizado,  mais  especializado do que  Gaia. Mas,  no fundo,  Gaia  e  Rea são  como  mãe  e  filha,  muito  próximas, semelhantes.
No  teatro do  mundo,  o  cenário  está  montado.  Abriu-se  o  espaço, o  tempo passou, gerações vão  se  suceder.  Há  o mundo  subterrâneo, há  a  vasta terra,  as  ondas, o  rio  Oceano que cerca tudo isso  e,  lá em  cima,  um céu  fixo.  Assim como  a terra  é  um  local estável  para  os homens  e  os bichos,  também, no  alto,  o  céu  etéreo é  morada  segura  para  as  divindades. Os Titãs,  fihos  do Céu,  e que são  os  primeiros  deuses  propriamente  ditos,  têm, pois,  o  mundo  à  sua  disposição. Vão  se  instalar  bem  no  alto,  sobre  as  montanhas  da  terra,  ali onde também  se estabelecerá a  morada  estável  das  divindades menores,  como  as  Náiadas,  Ninfas  dos Bosques  e  Ninfas  das  Montanhas.  Cada  um  deles  se  instala onde pode agir.
Bem no  alto do  céu  encontram-se os  deuses  Titãs,  esses  a  que chamamos  de  Urânidas,  filhos de  Urano,  rapazes e moças.  À frente deles está  o  caçula, o mais  jovem dos  deuses,  que  é  astuto,  burlão, cruel.  É  Crono, que  não  hesitou em cortar  as  partes  sexuais  de seu pai.  Ao  ter  a ousadia desse gesto,  desbloqueou  o universo,  criou  o espaço, engendrou um  mundo  diferenciado, organizado.  Esse gesto positivo  também tem um aspecto sombrio, pois  ao  mesmo tempo  é uma falta pela  qual  ele terá de  pagar:  quando  se  retirou  para seu lugar  definitivo,  Urano  não  deixou  de  lançar contra  seus  filhos,  os  primeiros deuses  individualizados,  uma imprecação  que  se  realizará  e ficará  a  cargo das  Erínias,  nascidas  da  mutilação.  Um dia, Crono terá de  pagar  a  dívida com  as  Erínias vingadoras  de seu  pai.
Rea
Portanto,  é  Crono,  o  mais  moço  e  também  o  mais  audacioso filho  de  Gaia - aquele que  emprestou  seu  braço  à  artimanha  da mãe  para  afastar  Céu  e  separa-lo  dela,  que  será  o  rei  dos deuses e  do  mundo.  Com  ele,  em  torno dele, estão os deuses  Titãs, inferiores mas  cúmplices.  Crono  os  libertou,  eles  são  seus  protegidos. Dos  abraços  de  Urano  e  Gaia, também haviam nascido  dois  trios de  personagens  que,  de  início,  estavam  bloqueados,  tal  como  seus irmãos Titãs, no  seio  de  Terra:  são os  três Ciclopes  e  os três  Cem- Braços.  O  que  acontece  com  eles?  Tudo  leva  a  crer  que  Crono,  esse deus  ciumento  e  malvado, sempre  à  espreita,  os  acorrentou, receoso de  que alguém  estivesse  tramando  um  golpe  baixo  contra ele.  Amarra  os  três  Ciclopes,  os  três  Cem-Braços, e  relega-os  ao mundo infernal.  Por  outro lado,  os  Titãs  e as  Titânidas vão  se  unir, Crono  a  uma  delas,  Rea.  Esta aparece  como  uma  espécie  de dublê  de  Gaia.  Rea  e  Gaia  são  duas forças  primordiais  próximas. No entanto,  algo  as diferencia:  Gaia  tem  um  nome transparente para qualquer  grego, pois  se  chama Terra e  é  a  terra; Rea,  por  sua vez, recebeu  um  nome  pessoal,  individualizado,  que  não encarna nenhum  elemento  natural.  Rea representa  um  aspecto  mais  antropomorfo, mais  humanizado,  mais  especializado do que  Gaia. Mas,  no fundo,  Gaia  e  Rea são  como  mãe  e  filha,  muito  próximas, semelhantes.


quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

DISCÓRDIA E AMOR - CAPÍTULO 4



Urano

O que acontece com o membro que Crono joga no mar, isto é, no Póntos?  Não soçobra nas ondas marinhas, fica boiando, e a espuma do esperma se mistura com a espuma do mar. Dessa combinação espumosa em torno do sexo, que se desloca ao sabor das ondas, forma-se uma fantástica criatura: Afrodite, a deusa nascida do mar e da espuma.  Ela navega por certo tempo e depois chega à sua ilha, Chipre. Caminha pela areia e, à medida que vai andando, as flores mais perfumadas e mais belas nascem sob seus pés.  No rastro de Afrodite, seguindo seus
Éros
Éris
passos, surgem Éros e Hímeros, Amor e Desejo. Esse Eros não é o Eros primordial, mas um outro que, doravante, exige que haja o feminino e o masculino. Ocasionalmente se dirá que ele é filho de Afrodite. Assim, Eros muda de função. Não mais representa o papel exercido nos primórdios do cosmo, que era o de trazer à luz o que estava contido na escuridão das forças primordiais. Agora, seu papel é unir dois seres bastante individualizados, de sexos diferentes,  num  jogo  erótico que supõe  uma  estratégia amorosa  e  tudo  o  que  isso  comporta  de  sedução,  concordância, ciúme.  Eros  une  dois  seres  distintos para  que,  a  partir  deles,  nasce um  terceiro, que  não  seja idêntico  a  um  nem  a  outro  de  seus genitores, mas que prolongue  a  ambos.  Assim, há agora uma criação que  se  diferencia da que houve na  era  primordial. Em outras palavras, ao cortar  o sexo  de  seu pai,  Crono  instituiu duas  forças  que, para os  gregos,  são  complementares: uma  que se  chama  Éris,  a Disputa,  e  outra que  se  chama  Éros, o  Amor.
Éris é o combate  dentro  de uma  mesma família ou dentro  de uma mesma humanidade,  é  a  briga,  a  discórdia  no  que  estava unido.  Eros, ao contrário,  é  a concordância  e a  união do  que  é tão dissemelhante  quanto  possa ser o  feminino  do masculino.  íris  e Eros  são  ambos produzidos  pelo  mesmo  ato  fundador  que  abriu  o espaço,  desbloqueou  o  tempo,  permitiu  que  gerações sucessivas surgissem  no  palco do  mundo,  agora  desimpedida.
Nessa altura, todos esses personagens divinos,  com  íris  de  um lado,  Eros  de  outro,  vão  se  enfrentar  e  combater-se.  Por que vão lutar?  Menos para  Formar o universo,  cujas  bases  já estão assentadas, e  mais para  designar  o  senhor  desse  universo.  Quem  será  o soberano?  Em  vez de  um  relato  cosmogônico  que faz  as  perguntas: "O  que  é  o  começo do  mundo?  Por que  o  Caos  primeiro?  Como  foi fabricado tudo o que o universo contém?", surgem  outras perguntas a  que outros relatos, muito  mais  dramáticos, tentam responder.  De que  modo  os deuses,  que foram criados  e que  por  sua vez engendram,  vão lutar  e  se  dilacerar?  Como  vão  se entender?  Como ns  Titãs  deverão  expiar  a  falta  que  cometeram contra  o  pai  Urano, como  serão castigados?  Quem  vai  garantir  a  estabilidade  deste mundo  construído  a  partir  de um nada  que  era  tudo, de uma  noite da  qual  saiu  até a  luz, de um  vazio do  qual nascem o cheio  e  o sólido?  Como  o  mundo vai  se  tornar  estável,  organizado, com  seres individualizados?  Ao  se  afastar,  Urano  abre  caminho para uma série  ininterrupta  de  gerações.  Mas,  se  a cada  geração  os  deuses lutarem entre  si,  o  mundo  não terá  nenhuma  estabilidade.  A  guerra  dos deuses deve chegar  ao  fim  para  que a  ordem  do  mundo  seja definitivamente  estabelecida. Levanta-se  a cortina do  palco  onde serão travadas as  lutas  pela soberania  divina.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

A TERRA, O ESPAÇO, O CÉU - CAPÍTULO 3

Gaia se liberta de Urano



Ao castrar Urano, a conselho e graças à astúcia de sua mãe, Crono cumpre uma etapa fundamental no nascimento do cosmo. Separa o céu e a terra. Cria entre o céu e a terra um espaço livre: tudo o que a terra produza. tudo o que os seres vivos engendrarem, terá espaço para respirar, para viver. Assim, o espaço se desbloqueia, mas o tempo também se transforma. Enquanto Urano pesava sobre Gala, não havia gerações sucessivas, pois elas ficavam ocultas dentro da criatura que as produzira. Quando Urano se retira, os Titãs podem sair do colo materno e, por sua vez, darem à luz. Inicia-se então uma sucessão de gerações. O espaço se libera e o "céu estrelado" tem agora o papel de um teto, de uma espécie de grande abóbada escura, estendida acima da terra. De vez em quando, esse céu preto vai se iluminar, pois agora o dia e a noite se alternam. Ora surge um céu preto tendo apenas a luz das estrelas, ora, ao contrário, é um céu luminoso que aparece, tendo apenas a sombra das nuvens. 

Deixemos por um instante a descendência de Terra e encontremos a de Caos. O Abismo produz dois filhos, um se chama Érebos, Érebo, o outro, Nýx, Noite. Como prolongamento direto de Caos, Érebo é o negro absoluto, a força do negro em estado puro, sem se misturar a nada. O caso de Noite é diferente. Assim como Gaia, ela também gera filhos sem se unir a ninguém, como se os fizesse em seu próprio tecido noturno: trata-se de Aithér, Éter, Luz Etérea, e de Hemére, Dia, Luz do Dia.
Érebo, filho do Caos, representa o negro próprio dessa criatura. Inversamente, Noite invoca o dia. Não há noite sem dia. Quando Noite produz Éter e Dia, o que faz ela? Assim como Érebo era o escuro em estado puro, Éter é a luminosidade em estado puro. Éter é a contrapartida de Érebo. O Éter brilhante é a parte do céu onde nunca há escuridão, ou seja, a que pertence aos deuses do Olimpo. O Éter é uma luz extraordinariamente viva que nunca é alterada por sombra alguma. Ao contrário, Noite e Dia se apoiam mutuamente, opondo-se. Desde que o espaço se abriu, Noite e Dia se sucedem regularmente. À entrada do Tártaro encontram-se as portas da Noite que se abrem para a sua morada. É ali que Noite e Dia se apresentam sucessivamente, se comunicam, se cruzam, sem jamais se juntarem nem se tocarem. Quando há noite não há dia, quando há dia não há noite, mas não há noite sem dia.
Assim como Érebo representa uma escuridão total e defnitiva, Éter encarna a luminosidade absoluta. Todos os seres que vivem na terra são criaturas do dia e da noite; com exceção da morte, eles ignoram essa escuridão total que nenhum raio de sol jamais alcança e que é a noite do Érebo. Os homens, os bichos, as plantas vivem noite e dia nessa conjunção de opostos, ao passo que os deuses, bem no alto do céu, não conhecem a alternância do dia e da noite. Vivem numa luz profunda e permanente. No alto, temos os deuses celestes no Éter brilhante, embaixo os deuses terrâneos ou os que foram derrotados e enviados ao Tártaro, e que vivem numa noite constante; e depois, os mortais, neste mundo, que já é um mundo de mistura.
Voltemos a Urano. O que acontece quando ele se fixa no alto do mundo? Não se une mais a Gaia, a não ser durante as grandes chuvas fecundantes, quando o céu se solta e a terra dá à luz. Essa chuva benfazeja permite que nasçam na terra novas criaturas, novas plantas, cereais. Mas, fora esse período, está cortado o vínculo entre o céu e a terra.
Quando Urano se afastou de Gaia, lançou uma terrível imprecação contra seus filhos: "Ireis chamar-vos Titãs", disse-lhes, fazendo um trocadilho com o verbo titaíno, "porque estendestes os braços alto demais, ireis expiar o crime de ter levantado a mão para vosso pai". As gotas de sangue de seu membro viril mutilado que caíram no chão deram origem, algum tempo depois, às Erínias. São elas as forças primordiais cuja função essencial é guardar a recordação da afronta feita por um parente a outro, e de fazê-lo pagar, seja qual for o tempo necessário para isso. São as divindades da vingança pelos crimes cometidos contra os consangüíneos. As Erínias representam o ódio, a recordação, a memória do erro, e a exigência de que o crime seja castigado.
Ninfa
As Erínias
Ciclope
Do sangue da ferida de Urano nascem, junto com as Erínias, os Gigantes e as Melíai, ou Ninfas, dessas grandes árvores que são os freixos. Os Gigantes são essencialmente guerreiros, personificam a violência bélica: desconhecendo a infância e a velhice, são eles, a vida inteira, adultos na força da idade, dedicados à luta, com gosto pela batalha mortal. As Ninfas dos Freixos -- as Meliádas -- também são guerreiras, e também têm vocação para o massacre, pois o bosque de lanças das quais se servem os guerreiros durante o combate é justamente o das árvores onde elas habitam. Assim sendo, das gotas do sangue de Urano nascem três tipos de personagens que encarnam a violência, o castigo, o combate, a guerra, o massacre. Um nome resume aos olhos dos gregos essa violência: é Éris, conflitos de todos os tipos e de todas as formas, ou discórdia dentro de uma mesma família, no caso das Erínias.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

A CASTRAÇÃO DE URANO - CAPÍTULO 2



                  Comecemos  pelo  Céu, isto  é,  Urano,  gerado  por Gaia  e  do mesmo  tamanho  que  ela. Ele está  deitado, estendido sobre  quem a gerou.  O Céu  cobre completamente  a  Terra. Cada  porção  de  terra  é duplicada  por  um pedaço  de  céu  que lhe  corresponde  perfeitamente. Quando  Gaia, divindade  poderosa,  Mãe-Terra, produz  Urano, que é seu  correspondente  exato,  sua duplicação,  seu  duplo simétrico,  nos  encontramos  em  presença  de  um  casal de  contrários,  de  um macho  e  uma fêmea.  Urano  é o  Céu,  assim  como Gaia  é  a  Terra. Na presença  de Urano,  Amor  age  de  outro modo. Nem Gaia  nem Urano  produzem  sozinhos  o  que cada  um  tem dentro  de  si, mas  da conjunção  dessas  duas forças nascem seres diferentes  de uma  e outra.
Urano  está  o  tempo  todo se deitando sobre  Gaia. Urano primordial não  tem  outra  atividade além  da  sexual.  Cobrir  Gala  incessantemente,  o mais possível:  ele  só pensa nisso,  e  só  faz  isso.  Então, essa  pobre Terra acaba grávida de  uma  série  de  filhos que  não conseguem  sair  de seu  ventre  e  aí  continuam  alojados, aí  mesmo  ond
e Urano  os  concebeu.  Como Céu  nunca  se distancia  de  Terra,  não  há espaço  entre  eles  que  permita  aos  seus filhos  Titãs  virem  a  luz  e terem  uma  existência  autónoma.  Estes não  podem tomar  a  forma que  é  a  deles,  não  podem  se  transformar  em seres  individualizados, pois  não  conseguem  sair  do  ventre  de  Gaia,  ali  onde  o próprio Urano  esteve antes  de nascer.
O primeiro trio - Ciclopes
O segundo trio - Os cem braços
Quem  são  os  filhos  de  Gaia  e  Urano? Primeiro,  há  os  seis  Titãs e  suas  seis  irmãs,  as Titânidas.  O primeiro  Titã  chama-se  Okeanós. É esse  cinturão  líquido  que  rodeia  o  universo  e  corre  em  círculo,  de tal  modo  que  o  fim  de Oceano  é  também  seu  começo;  o  rio  cósmico corre em circuito fechado sobre  si  mesmo.  O  mais jovem  Titã tem  o  nome de  Krónos,  é  o  chamado  “Crono  dos pensamentos marotos”.  Além  dos Titãs  e  das  Titânidas,  nascem  dois  trios  de seres absolutamente  monstruosos.  O  primeiro  é  o  dos  Ciclopes  -  Brontes, Estéropes  e  Argeus  -,  personagens  muito  poderosos  que têm um  só  olho  e  cujos  nomes  são  reveladores  do tipo  de  metalurgia a que  se  dedicam:  o  ronco  do  trovão,  o  fulgor do  relâmpago. Na  verdade,  eles  é  que vão  fabricar  o  raio  que  será  doado  a  Zeus.  O  segundo  trio  é  formado  pelos  Hekatonkhîres, ou Cem-Braços - Coto, Briareu e Gies.  São seres  monstruosos  de  tamanho  gigantesco,  que têm  cinquenta  cabeças  e  cem  braços,  sendo cada  braço  dotado  de uma força  terrível.
Ao lado  dos  Titãs,  esses  primeiros  deuses  individualizados  -ao  contrário  de  Gaia, Urano ou  Ponto,  eles  não  são apenas  um nome dado a  forças  naturais  -,  os  Ciclopes  representam  a  fulgurância  da  visão. Possuem  um  só  olho  no  meio  da testa, mas  esse olho  é  fulminante,  assim  como  a  arma  que  vão  oferecer  a  Zeus. Força mágica do olho.  Por  sua vez,  os Cem-Braços  representam, com sua força  brutal,  a  capacidade  de vencer, de  triunfar  pela  força física do braço. Para  uns,  força  de  um olho  fulminante;  para  outros, força da  mão  que  é  capaz  de  juntar,  apertar, quebrar, vencer,  dominar  todas  as  criaturas  no  mundo. No  entanto,  Titãs, Cem-Braços  e Ciclopes  estão  no  ventre  de  Gaia; Urano  está  deitado sobre  ela.
 Ainda  não  há  propriamente luz, pois  Urano,  ao  se  deitar  sobre Gaia,  mantém  uma  noite contínua. Então, Terra  explode  de  raiva. Está furiosa  por  reter  em  seu seio  esses  filhos que,  sem  poderem sair,  deixam-na inchada,  comprimem-na, sufocam-na.  Dirige-se  a eles,  em especial aos  Titãs,  dizendo-lhes:  “Escutai,  vosso pai nos  faz injúria,  nos  submete  a  violências horríveis,  isso tem  de  acabar”. Deveis revoltar-vos  contra vosso pai Céu:  Ao ouvir  essas  palavras vigorosas,  os  Titãs, no  ventre  de  Gaia ficam aterrorizados.  Urano, que continua  instalado  sobre  a  mãe  deles,  tão grande quanto  ela, não  lhes  parece fácil de  ser  vencido.  Só  o caçula,  Crono,  aceita  ajudar  Gaia  e  enfrentar  o pai.
Terra concebe  um plano particularmente  engenhoso. Para executa-lo, fabrica dentro  de  si  mesma um  instrumento,  um tipo de foice, a  harpe,  em metal  branco.  Depois,  coloca  essa  foice  na  mão  do jovem  Crono.  Ele  está  no  ventre  da mãe, ali onde  Urano  se  uniu  a Terra,  e  fica  à  espreita,  em  emboscada.  Quando Urano  se  deita sobre Gaia,  ele  agarra  com  a  mão esquerda  as  partes  sexuais  do  pai, segura-as  firmemente  e,  com  a  foice  que  brande  na  mão direita, corta-as.  Depois,  sem  se  virar, para  evitar  a  desgraça que  seu  gesto teria  provocado, joga por  cima do  ombro  o membro  viril  de  Urano.
Desse  membro  viril,  cortado  e  jogado  para  trás, caem sobre  a  terra Gotas  de sangue, ao passo que  o  próprio  sexo é  atirado  mais longe, nas  ondas do mar.  No  momento  em  que  é  castrado,  Urano  dá  um berro  de  dor  e  se afasta depressa  de  Gaia.  Vai  então  se  instalar  bem no alto  do  mundo,  de  onde não mais sairá.  Como Urano tinha  o mesmo tamanho  de  Gaia,  não  há  um  só  lote de terra que não encontre  lá em  cima  um pedaço equivalente de céu.

domingo, 30 de novembro de 2014

O INÍCIO DE TUDO - A ORIGEM DO UNIVERSO-CAPÍTULO 1

O que havia quando ainda não havia coisa alguma, quando não havia nada? A essa pergunta os gregos responderam com histórias e mitos.
No início de tudo, o que primeiro existiu foi Abismo: os gregos dizem Kháos. O que é o Caos? É um vazio, um vazio escuro onde não se distingue nada. Espaço de queda, vertigem e confusão, sem fim, sem fundo. Somos apanhados por esse Abismo como por uma boca imensa e aberta que tudo tragasse numa mesma noite indistinta. Portanto, na origem há apenas esse Caos, abismo cego, noturno, ilimitado. Depois apareceu Terra. Os gregos dizem Gaîa, Gaia. Foi no próprio seio do Caos que surgiu a Terra. Portanto, nasceu depois de Caos e representa, em certos aspectos, seu contrário. A Terra não é mais esse espaço de queda escuro, ilimitado, indefinido. A Terra possui uma forma distinta, separada, precisa. À confusão e à tenebrosa indistinção de Caos opõem-se a nitidez, a firmeza e a estabilidade de Gaia. Na Terra tudo é desenhado, tudo é visível e sólido. É possível definir Gaia como o lugar onde os deuses, os homens e os bichos podem andar com segurança. Ela é o chão do mundo.


 NAS PROFUNDEZAS DA TERRA: O ABISMO


 Nascido do vasto Abismo, o mundo agora tem um chão. De um lado, esse chão se eleva bem alto, na forma de montanhas; de outro, desce bem baixo, na forma de subterrâneo. Essa subterra se prolonga infinitamente, e assim, de certa forma, o que existe na base de Gaia, sob o solo firme e sólido, é sempre o Abismo, o Caos. A Terra, que surgiu do Abismo, liga-se a ele em suas profundezas. Esse Caos evoca para os gregos uma espécie de névoa opaca onde todas as fronteiras perdem nitidez. No mais profundo da Terra encontra-se esse aspecto caótico original.
Embora a Terra seja bem visível, tenha uma forma recortada, e tudo o que dela nascer também terá limites e fronteiras distintas, nem por isso ela deixa de ser, em suas definem nos relatos são similares aos que se referem ao Abismo. A Terra negra se estende entre o baixo e o alto; entre, de um lado, a escuridão e o enraizamento no Abismo, representado em suas profundezas, e, de outro, as montanhas encimadas de neve que ela projeta para o céu, montanhas luminosas cujos picos mais altos atingem a zona celeste continuamente inundada de luz.
A Terra constitui a base dessa morada que é o cosmo, mas não tem só essa função. Gaia é a mãe universal. Florestas, montanhas, grutas subterrâneas, ondas do mar, vasto céu, é sempre de Gaia, a Mãe-Terra, que eles nascem. Portanto, primeiro houve o Caos, imensa boca em forma de abismo escuro sem limites, mas que num segundo tempo abriu-se para um chão sólido: a Terra. Esta se lança para o alto, desce às profundezas. Depois de Caos e Terra aparece, em terceiro lugar, o que os gregos chamam Éros, e que mais tarde chamarão "o velho Amor' representado nas imagens com cabelos brancos: é o Amor primordial. por que esse Eros primordial? Porque, nesses tempos longínquos, ainda não há masculino e feminino, não há seres sexuados. O Eros primordial não é aquele que surgirá mais tarde, com a existência dos homens e das mulheres, dos machos e das Fêmeas. Nesse momento, o problema será acasalar os sexos contrários, o que implica necessariamente o desejo de cada um e uma forma de consentimento.
Kháos é uma palavra neutra, e não masculina. Gaia, a Mãe- Terra é evidentemente feminina. Mas quem ela pode amar fora de si mesma, já que está sozinha, ao lado de Caos? O Éros que aparece em terceiro lugar, depois de Caos e Gaia, não é aquele que preside aos amores sexuados. O primeiro Eros expressa um impulso no universo. Da mesma forma que Terra surgiu de Caos, de Terra vai brotar o que ela contém em suas profundezas. Terra vai parir sem precisar se unir a ninguém. Ela dá à luz o que nela existia de forma obscura.
Primeiro, Terra engendra um personagem muito importante, Ouranós, Céu, e até mesmo Céu estrelado. Depois, traz ao mundo Póntos, isto é, a água, todas as águas, e mais exatamente a Onda do Mar, palavra que em grego é masculina. Terra os concebe sem se unir a ninguém. Pela força íntima que tem, Terra desenvolve o que já estava dentro de si e que, ao sair dela, torna-se seu duplo e seu contrário. Por quê? Porque produz um Céu estrelado igual a si mesma, como uma réplica tão sólida, tão firme quanto ela, e do mesmo tamanho. Então, Urano se deita sobre ela. Terra e Céu constituem dois planos superpostos do universo, um chão e uma abobada, um embaixo e um em cima, que se cobrem completamente.
Quando Terra dá à luz Ponto, Onda do Mar, este a completa e se insinua dentro dela, limitando-a na forma de vastas superfícies líquidas. Assim como Urano, Onda do Miar representa o contrário de Terra. Se a Terra é sólida, compacta, e se as coisas não podem se misturar com ela, Onda do Mar é, ao contrário, pura liquidez, fluidez disforme e inapreensível: suas águas se misturam, indistintas e confusas. Na superfície, Ponto é luminoso, mas em suas profundezas é de uma escuridão total, o que o vincula, tal como a Terra, a uma parte caótica.

Assim, o mundo se constrói a partir de três entidades primordiais: Kháos, Gaia e Eros, e, em seguida, de duas entidades paridas por Terra: Ouranós e Póntos. Elas são ao mesmo tempo forças naturais e divindades. Gaia é a terra onde andamos, e ao mesmo tempo é uma deusa. Ponto representa as ondas do mar e também constitui uma força divina, à qual pode se prestar um culto. A partir daí, surgem relatos de outro tipo, histórias violentas e dramáticas.