quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

DISCÓRDIA E AMOR - CAPÍTULO 4



Urano

O que acontece com o membro que Crono joga no mar, isto é, no Póntos?  Não soçobra nas ondas marinhas, fica boiando, e a espuma do esperma se mistura com a espuma do mar. Dessa combinação espumosa em torno do sexo, que se desloca ao sabor das ondas, forma-se uma fantástica criatura: Afrodite, a deusa nascida do mar e da espuma.  Ela navega por certo tempo e depois chega à sua ilha, Chipre. Caminha pela areia e, à medida que vai andando, as flores mais perfumadas e mais belas nascem sob seus pés.  No rastro de Afrodite, seguindo seus
Éros
Éris
passos, surgem Éros e Hímeros, Amor e Desejo. Esse Eros não é o Eros primordial, mas um outro que, doravante, exige que haja o feminino e o masculino. Ocasionalmente se dirá que ele é filho de Afrodite. Assim, Eros muda de função. Não mais representa o papel exercido nos primórdios do cosmo, que era o de trazer à luz o que estava contido na escuridão das forças primordiais. Agora, seu papel é unir dois seres bastante individualizados, de sexos diferentes,  num  jogo  erótico que supõe  uma  estratégia amorosa  e  tudo  o  que  isso  comporta  de  sedução,  concordância, ciúme.  Eros  une  dois  seres  distintos para  que,  a  partir  deles,  nasce um  terceiro, que  não  seja idêntico  a  um  nem  a  outro  de  seus genitores, mas que prolongue  a  ambos.  Assim, há agora uma criação que  se  diferencia da que houve na  era  primordial. Em outras palavras, ao cortar  o sexo  de  seu pai,  Crono  instituiu duas  forças  que, para os  gregos,  são  complementares: uma  que se  chama  Éris,  a Disputa,  e  outra que  se  chama  Éros, o  Amor.
Éris é o combate  dentro  de uma  mesma família ou dentro  de uma mesma humanidade,  é  a  briga,  a  discórdia  no  que  estava unido.  Eros, ao contrário,  é  a concordância  e a  união do  que  é tão dissemelhante  quanto  possa ser o  feminino  do masculino.  íris  e Eros  são  ambos produzidos  pelo  mesmo  ato  fundador  que  abriu  o espaço,  desbloqueou  o  tempo,  permitiu  que  gerações sucessivas surgissem  no  palco do  mundo,  agora  desimpedida.
Nessa altura, todos esses personagens divinos,  com  íris  de  um lado,  Eros  de  outro,  vão  se  enfrentar  e  combater-se.  Por que vão lutar?  Menos para  Formar o universo,  cujas  bases  já estão assentadas, e  mais para  designar  o  senhor  desse  universo.  Quem  será  o soberano?  Em  vez de  um  relato  cosmogônico  que faz  as  perguntas: "O  que  é  o  começo do  mundo?  Por que  o  Caos  primeiro?  Como  foi fabricado tudo o que o universo contém?", surgem  outras perguntas a  que outros relatos, muito  mais  dramáticos, tentam responder.  De que  modo  os deuses,  que foram criados  e que  por  sua vez engendram,  vão lutar  e  se  dilacerar?  Como  vão  se entender?  Como ns  Titãs  deverão  expiar  a  falta  que  cometeram contra  o  pai  Urano, como  serão castigados?  Quem  vai  garantir  a  estabilidade  deste mundo  construído  a  partir  de um nada  que  era  tudo, de uma  noite da  qual  saiu  até a  luz, de um  vazio do  qual nascem o cheio  e  o sólido?  Como  o  mundo vai  se  tornar  estável,  organizado, com  seres individualizados?  Ao  se  afastar,  Urano  abre  caminho para uma série  ininterrupta  de  gerações.  Mas,  se  a cada  geração  os  deuses lutarem entre  si,  o  mundo  não terá  nenhuma  estabilidade.  A  guerra  dos deuses deve chegar  ao  fim  para  que a  ordem  do  mundo  seja definitivamente  estabelecida. Levanta-se  a cortina do  palco  onde serão travadas as  lutas  pela soberania  divina.

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